sábado, 15 de fevereiro de 2014

Seriam as áreas de pobreza reservas de mercado? Parte 2: experimentação

A partir da estrutura teórica e metodológica definida na parte 1 dessa postagem (ver abaixo) Calibração, delineam-se os experimentos descritos abaixo, que visam dar encaminhemento experimental e tentativo às hipóteses estabelecidas teóricamente. A estrutura dessa descrição, portanto, seguirá a estrutura da parte 1 dessa postagem na forma de uma continuação direta.

4. Implementação do modelo:

Caso em estudo: Canguçu, RS
Cenário de calibragem 1967-2013 (46 iterações): cenário “business as usual”
Crescimento “informado” pela presença da renda: localização da concentração de cada perfil espacialmente (IBGE, 2000; 2010):
Simulação de 3 cenários para testes:
a) Cenário de base: comportamento business as usual ajustado 10 anos
b) Cenário com baixa renda como atrator do crescimento
c) Cenário com baixa renda como resistência ao crescimento

4.1 Cenário de calibragem

O cenário de calibragem visava determinar quais os atributos relevantes para o caso em estudo, além de ajustas a importância de cada parâmetro do modelo para a simulação. O intervalo de tempo foi escolhido devido a disponibilidade de dados comparativos, que permitir a validação do modelo ante a realidade. Nessa forma, o modelo começa a simular o crescimento urbano a partir de 1967 e tenta ser semelhante ao estado da cidade em 2013, medido através de ferramentas específicas que serão mostradas abaixo.

Os atributos de entrada do modelo (inputs) que pareceram ser mais significativos foram: a atração ao crescimento urbano a partir da forma urbana em 1967 e as estradas principais e secundárias; e a resistência a urbanização dos cursos d'água, da declividade e de um padrão aleatório (recurso de modelagem comum que auxilia a, entre outras coisas, quebrar o determinismo do modelo).

 

Figura 3 - Parâmetros e atributos do Cenário de Calibragem Figura 4 - atributos de entrada na simulação de calibragem

Os resultados da simulação podem ser avaliados nas figuras 5, 6 e 7 abaixo, onde se vê a geração, ano a ano, do potencial e tipo de células urbanos, centralidade absoluta e resistência ambiental respectivamente

Figura 5 - potencial de urbanização sobreposto às células com fenótipo urbano

Figura 6 – centralidade absoluta

 

 

O avanço da urbanização sobre os atributos naturais ocorre com a superação das resistências que opõem. A figura 7 mostra parte do papel ativo que os atributos naturais têm para urbanização (ALBERTI et al., 2003). Em par com esse comportamento há também a atração à urbanização. A lógica por trás dessa relação é a de atribuir um papel ativo aos atributos naturais na urbanização e, nesta simulação, fica claro o peso maior dado à declividade enquanto fator determinante para a urbanização em Canguçu.

 

  Figura 7 - resistência ambiental

A comparação com os dados da realidade pode ser vista nas imagens 8 e 9, abaixo. Foi utilizada a técnica de comparação direta (crisp comparison) e comparação fuzzy, de onde se pode perceber que, dentro de uma faixa de precisão de 200m (tamanho de cada célula, significando erro de uma célula para qualquer direção), obtém-se até 75,2% de acerto, que pode ser considerado bastante alto. A imagem 8 (a esquerda) mostra a avaliação crisp sem tolerância (a simulação tem que ser exatamente igual a realidade), enquanto a imagem 9 (a esquerda) mostra a avaliação por similaridade fuzzy na qual um acerto idêntico vale 1, um acerto há uma célula de distância vale 0,5, acertos a 2 células valem o,3 e assim por diante.


Figuras 8 e 9 – resultados da avaliação por similaridade entre o cenário de calibragem e a mancha urbana em 2013.

 

4.2 Cenário Base

O Cenário Base visava instituir o cenário de referência para as demais simulações. A partir dos parâmetros, ajustes dos pesos e atributos determinados no cenário de calibragem se acerta a simulação para o período de 2000 a 2010, de modo a ser possível inserir – e comparar os efeitos – das concentrações de renda no município, obtidos a partir dos censos destes anos.
Os dados de renda foram determinados a partir da renda do chefe do domicílio e estratificados em três cortes: de 0 a 3 salários mínimos mensais, de 3 a 6 salários e acima de 6 salários. Estes dados apresentam-se, nas bases dos censos, em setores censitários, unidades geográficas abstratas determinadas a partir da dinâmica de pesquisa dos ressenciadores, carecendo de referências ambientais, sociais ou urbanas para sua determinação. Para relacionar com os demais atributos da simulação, realizou-se o corte dos setores pela Área Efetivamente Urbanizada, determinada a partir da imagem aérea para 2013.

Figura 10 - Parâmetros e atributos do Cenário Base Figura 11 - atributos de entrada na simulação de base

Os atributos de entrada do modelo foram os mesmos que na simulação anterior. A diferença ocorreu nos parâmetros, como o lambda externo, que passou de 3,5 para 2,8 e da alteração de ambos rô, que passaram de 1 para 0,2 (interno) e 0,15 (externo), de modo a limitar a taxa de crescimento anual observada, já que para o período de 2000-2010 foram realizadas 60 iterações, sendo cada uma equivalente a um trimestre.

 

Figura 12 – áreas de baixa (marrom), média (laranja) e alta (amarelo) renda para o ano de 2000. Figura 13 – áreas de baixa (marrom), média (laranja) e alta (amarelo) renda para o ano de 2010

Os resultados da simulação podem ser avaliados nas figuras 14 e 15 abaixo, onde se vê a geração, ano a ano, do potencial e tipo de células urbanos, centralidade absoluta e resistência ambiental respectivamente.

Figura 14 - potencial de urbanização sobreposto às células com fenótipo urbano

Figura 15 – centralidade absoluta

   
Nas imagens 16 e 17, pode-se ver os resultados verificados ante a realidade. Vê-se que houve alguma piora em relação ao cenário de calibragem, mas ainda assim o índice de correspondência de 0,6364 obtido pela avaliação fuzzy com precisão de 200m pode ser considerado adequado para simulações urbanas.


  Figuras 16 e 17 – resultados da avaliação por similaridade entre o cenário de base e a mancha urbana em 2013

4.3 Cenário Atrator

O Cenário atrator se constitui no primeiro cenário experimental. A partir da hipótese da substituição preferencial das áreas de pobreza em processos de expansão urbana, em que se preferiria urbanizar áreas já ocupadas mesmo que pouco infraestruturadas ao invés de expandir sobre as áreas nunca utilizadas, se atribui ao atributo 0 a 3 2000 o peso 0,8 como atrator. Esse atributo é formado pelas áreas em que se concentram mais que 95% de famílias com baixa renda (0 a 3 salários) no ano de 2000, supondo que seriam justamente essas áreas os principais vetores de crescimento. Os demais atributos e parâmetros são mantidos como no cenário base.

19_CAN_baixaRenda95_gridFigura 18 – gird celular com as áreas de baixa renda, conforme carregado para o CityCell

 

Figura 19 - Parâmetros e atributos do Cenário Atrator Figura 20 - atributos de entrada do Cenário Atrator

Os resultados da simulação podem ser vistos nas imagens 21 e 22, onde nota-se que principalmente a forma da expansão foi alterada em relação a simulação de base.

 

Figura 21- potencial de urbanização sobreposto às células com fenótipo urbano

Figura 22 – centralidade absoluta

 

 

De acordo com os resultados demonstrados nas figuras 23 e 24, percebe-se que o grau de acerto (tanto crisp quanto fuzzy) caiu bastante. O destaque, no entanto, é pra forma apresentada pelo desenvolvimento, que seguiu muito mais as tendências observadas no período.

  Figuras 23 e 24 – resultados da avaliação por similaridade entre o cenário atrator e a mancha urbana em 2013

 

OBSERVAÇÕES E CONCLUSÕES

As hipóteses colocadas:

a) Espaços com centralidade baixa e resistências altas (especialmente as ambientais) são ocupados por famílias pobres [lógica da necessidade, em Abramo (2007)];
b) Quando a cidade expande, esses locais passam a ter maior centralidade relativa e, portanto, acabam valorizados. Os ricos então tendem a mover-se para eles, buscando tanto as vantagens da localização, como baixos custos [POLIDORI, 2004].

A tabela da figura 25 demonstra, de forma sintética, a comparação entre os valores verificaros para a similaridade entre as simulações e as manchas urbanas em 2013.

26_Slide29Figura 25 – comparação entre resultados dos cenários apresentados

Portanto as hipóteses se comprovam parcialmente:

  • Padrão visual é mais próximo que o cenário-base;
  • Correspondência é menor na avaliação por sobreposição
  • Resultados são interessantes metodologicamente por iniciarem experimentos com número grande de iterações (60 em 3 cenários);
  • Alta correlação do cenário de calibração, que decresce para os demais;
  • Ajuste da simulação para 60 iterações precisa avançar na sua calibragem.

Acredita-se que o estudo não tenha ido conclusivo, ainda mais por não contar, até o momento, com a simulação do cenário de resistência das áreas pobres. No entanot, uma conclusão possível, mesmo que intermediária e exploratória é de que as áreas de pobreza tem efeitos marginais na forma urbana e, dentro das dinâmicas de centralidade e potencial de urbanização, podem ser consideradas como incluídas nos próprios mecanismos geradores de crescimento urbano das simulações por essa medida. Estaria, portanto, comprovada parcialmente a hipótese de que as áreas de pobreza são locais de crescimento lógico da cidade, devendo essa ser testada com outros experimentos para determinar se há outros fatores mais influentes no crescimento urbano (como exploram, inclusive, outras postagens nesse blog).

Encaminham-se portanto as seguintes sugestões para experimentos futuros:

  • Calibrar ainda melhor as simulações, visando melhorar os resultados de cada cenário;
  • Verificar outras medidas que possam ser utilizadas para verificar a aproximação dos resultados com a realidade;
  • Não há experimentos suficientes sobre os fatores Rô interno e externo, assim como não se conhece muito sobre os efeitos de um Lambda externo tão alto (cerce de 2,5): sugere-se estudos piloto para verificar eventuais problemas na modelagem advindos deles;
  • Indica-se que a renda não pareça ser origem da valorização do solo, podendo, no entanto, ser resultado da dinâmica de centralidade;
  • A renda, portanto, não seria medida corretamente como origem da centralidade, mas seu produto – o ovo e a galinha.

Outros testes exploratórios devem ser realizados, incluindo o da resistência mencionado acima. Imagina-se que outras cidades, talvez de maior porte, possam retratar com maior fidedignidade os fenômenos observados nestes experimentos e petende-se, portanto, continuar explorando temática. Deve ser feita a ressalva de que esses cenários apresentados são talvez os mais óbvios e intuitivos e que talvez exatamente essa sequencia lógica se prove infundada.

A seguir, insinuam-se os parâmetros de entrada da simulação de resisstência, ou repulsão, ao crescimento a partir das áreas de concentração de baixa renda.

24_Slide27

26 – atributos e parâmetros de entrada para a simulação de resistência

 

REFERÊNCIAS

ABRAMO, P. A Cidade Com-Fusa: a mão inoxidável do mercado e a produção da estrutura urbana nas grandes metrópoles latino-americanas. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 9, n. 02, p. 25–53, 2007.

ALBERTI, M.; MARZLUFF, J. M; SHULENBERGER, E.; et al. Integrating Humans into Ecology: Opportunities and Challenges for Studying Urban Ecosystems. BioScience, v. 53, n. 12, p. 1169–1179, 2003. Uberlândia: American Institute of Biological Sciences. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1641/0006-3568(2003)053[1169:IHIEOA]2.0.CO>.

BARROS, J. X. Urban Growth in Latin American Cities Exploring urban dynamics through agent-based simulation, 2004. London: University College London. Disponível em: <http://www.dpi.inpe.br/cursos/environmental_modelling/joana_phd_thesis.pdf>. .

BATTY, M. Cities and Complexity: Understanding Cities With Cellular Automata, Agent-Based Models, and Fractals. Cambridge: MIT Press, 2005.

BATTY, M. Complexity in city systems: understanding, evolution, and design. CASA Working Papers, v. 44, n. 0, p. 0–35, 2007a. London.

BATTY, M. Model Cities. CASA Working Papers, v. 113, p. 0–38, 2007b. London.

BATTY, M.; COUCLELIS, H.; EICHEN, M. Urban systems as cellular automata. Environment and Planning B: Planning and Design, v. 24, n. 2, p. 159–164, 1997. Pion Ltd.

BENENSON, I.; TORRENS, P. M. Geosimulation: Automata-Based Modeling of Urban Phenomena. London: John Wiley & Sons, Ltd, 2004.

BÓGUS, L. M. M.; TASCHNER, S. P. São Paulo: velhas desigualdades, novas configurações espaciais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 1, p. 153–174, 1999. Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.anpur.org.br/revista/rbeur/index.php/rbeur/article/view/29/17>. .

BUZAI, G. D. Geografia Global: El paradigma geotecnológico y el espacio interdisciplinario en la interpretación del mundo del siglo XXI. Buenos AIres: Lugar Editorial, 1999.

CÂMARA, G.; MONTEIRO, A. Mapping Social Exclusion/Inclusion in Developing Countries: Social Dynamics of So Paulo in the 1990s. Center for Spatially Integrated Social Science, 2002. Disponível em: <http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/summary?doi=10.1.1.21.6160>. Acesso em: 21/8/2013.

GILBERT, A. Urban Growth, Employment and Housing. In: D. A. Preston (Ed.); Latin American Development: Geographical Perspectives, 1987. Harlow, Essex: Longman.

HARVEY, D. The urban process under capitalism: a framework for analysis. International Journal of Urban and Regional Research, v. 2, n. 1-4, p. 101–131, 1978. Oxford, UK.: Blackwell Publishing Ltd.

KRAFTA, R. Modelling intraurban configurational development. Environment and Planning B: Planning and Design, v. 21, n. 1, p. 67–82, 1994. Pion Ltd.

KRAFTA, R.; NETTO, V.; LIMA, L. Urban form grows critical. Disponível em: <http://cybergeo.revues.org/24787>. Acesso em: 20/11/2012.

POLIDORI, M. C. Crescimento urbano e ambiente: um estudo exploratório sobre as transformações eo futuro da cidade, 2004. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Instituto de Biociências - Programa de Pós Graduação em Ecologia: Tese de Doutorado.

PORTUGALI, J. Notions concerning the nature of world urbanization. Progress in Planning, v. 46, n. 3, p. 145–162, 1996. Disponível em: <http://www.ingentaconnect.com/content/els/03059006/1996/00000046/00000003/art88867>. Acesso em: 18/6/2013.

PORTUGALI, J. Self-organizing cities. Futures, v. 29, n. 4–5, p. 353–380, 1997.

SARAIVA, M. V. P. Simulação de crescimento urbano em espaços celulares com uma medida de acessibilidade: método e estudo de caso em cidades do sul do Rio Grande do Sul, 2013. Pelotas: Universidade Federal de Pelotas.

TORALLES, C. P. Cidade e crescimento periférico: modelagem e simulação da formação de periferias urbanas com autômatos celulares, 2013. Pelotas: Universidade Federal de Pelotas. Disponível em: <http://prograu.ufpel.edu.br/uploads/biblioteca/cidade_e_crescimento_periferico_dissertacao_cptoralles_mar2013ufpel.pdf>. .

TORRENS, P. M. How cellular models of urban systems work (1. Theory). CASA Working Papers, v. 28, p. 0–68, 2000. London.

UN-HABITAT. The Challenge of Slums: Global Report on Human Settlements. London: United Nations Human Settlements Programme, 2003.

WALKER, R. A. Two Sources of Uneven Development Under Advanced Capitalism: Spatial Differentiation and Capital Mobility. Review of Radical Political Economics, v. 10, n. 3, p. 28–38, 1978.

Nenhum comentário:

Postar um comentário