sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Seriam as áreas de pobreza reservas de mercado? Parte 1 Teoria

Os esforços de modelagem urbana podem ser orientados para a comprovação de uma tese ou exploração de cenários sobre os quais se pergunta "Mas e se tal cidade funcionasse da maneira X?". As chamadas questões "what if" são em verdade a exploração de hipóteses sobre as quais se tem algum questionamento teórico - como no caso da comprovação de uma tese ou adaptação de metáforas para explicar determinados fenômenos - ou algum interesse empírico, mas que não pode ser simplesmente observado diretamente dos fenômenos, seja por limitações de escala - ocorrências muito espalhadas, ou área de muito grande - quanto por limitações temporais, como no caso das simulações de períodos de décadas ou mesmo centenas de anos.

Os modelos então nos permitem acessar o conhecimento sobre a realidade através de poderosas inferências na forma de aproximações tentativas do real na forma de simulação de comportamentos conhecidos que podem então ser testados ante a comportamentos hipotéticos ou avaliados segundo indicadores.
A estrutura desse raciocínio pode ser demonstrada no diagrama da figura 1, onde deve-se notar, antes de mais nada, a natureza cíclica da atividade. A partir de uma questão de pesquisa inicial, se montam as hipóteses que devem ser traduzidas para uma estrutura do modelo. Essa estrutura, que deve reproduzir aspectos do fenômeno em estudo de forma abstrata e simplificada, de modo a permitir a compreensão de comportamentos específicos, seja de forma analítica ou, mais contemporaneamente, de forma sistêmica.


Figura 1 - Fluxo contínuo de formulação de modelos. Fonte Grimm et all (2005).

A partir da estrutura se implementa um modelo, procedendo-se a uma série de calibrações e ajustes até que esteja dentro dos parâmetros esperados. A partir de então se podem iniciar os testes com verificação da resposta a atributos determinados (presença de pavimentação, efeito de leis ou políticas públicas, etc.), como os vistos em diversos posts desse blog.
Essa análise pode ser sistematizada e seus resultados comunicados, de forma a trocar experiências e conclusões, mesmo que parciais, sobre os problemas estudados, de forma a permitir que, a partir do diálogo com outros pesquisadores, agentes, membros da comunidade e outros, se possa reformular as questões iniciais, detalhando-as, refutando-as em nome de outras ou as expandindo e complementando.
A simulação aqui apresentada foi realizada no software CityCell (SARAIVA et al., 2013), que se constitui em um ambiente celular de simulação de crescimento urbano a partir de interações de vizinhança. o framework do CityCell simula dinâmicas das cidades contemporâneas a partir de forte apoio nas teorias da complexidade (BATTY, 2005), em especial do afastamento dos estados de equilíbrio (BATTY, 2007a) e da emergência de padrões de ordem auto-organizados (PORTUGALI, 1996, 1997) e toma forma através da geosimulação (BUZAI, 1999; BENENSON; TORRENS, 2004; BATTY, 2007b) com os modelos dinâmicos de autômatos celulares (BATTY et al., 1997; TORRENS, 2000). O caso particular do CityCell utiliza das construções teóricas e metodológicas da centralidade (KRAFTA, 1997) e potencial de urbanização (POLIDORI, 2004) para, então, simular o crescimento das cidades a partir da interação entre forma construída, processos sociais e ambiente natural.

Ela visou responder a pergunta "A moradia de baixa renda é reserva de mercado?" a partir da percepção de que, nos movimentos de "sístole e diástole" (KRAFTA et al., 2011) de que é composto o crescimento urbano ocorre, em um primeiro momento, a expansão da área urbanizada a partir de loteamentos em grande parte de baixa renda.
Com o passar dos anos e o crescimento de outros setores da cidade, inclusive mais externos que os setores ocupados pelos pobres, os locais ocupados pelos pobres são "recontextualizados" (BARROS, 2004) na forma de ocupações de classe alta ou média. Durante o tempo entre esses dois momentos, as áreas pobres serviriam como reserva de mercado, consistindo em potencial de urbanização com baixo custo de conversão que pode ser convertida quando for conveniente.

Figura 2 - Cidade de Canguçu e título da apresentação relatada

Essa formulação parte da Teoria do Desenvolvimento Desigual (HARVEY, 1978; WALKER, 1978) e da observação de características específicas da América Latina (GILBERT, 1987; BÓGUS; TASCHNER, 1999; ABRAMO, 2007) e das cidades do sul do Rio Grande do Sul (TORALLES, 2013) que pontuam a substituição dos tecidos urbanos produzidos por populações pobres por formas de urbanização de classe média ou alta.

Para verificar essas afirmações, constituíram-se os passos do modelo de Grimm (2007), a começar pela formulação da pergunta de pesquisa:

1. Pergunta de pesquisa:

"As áreas de pobreza funcionam como reserva de mercado para populações mais ricas?"

Considerando o contexto regional:
· cidades pequenas do RS
· processos de expansão urbana
· século XX ao XXI (data inicial 1967)
· influência de atributos naturais e urbanos (sem institucionais)

2. Hipóteses teóricas:

1. espaços com centralidade baixa e resistências altas (especialmente as ambientais) são ocupados por famílias pobres [lógica da necessidade, em Abramo (2007)];
2. quando a cidade expande, esses locais passam a ter maior centralidade relativa e, portanto, acabam valorizados. Os ricos então tendem a mover-se para eles, buscando tanto as vantagens da localização, como baixos custos (POLIDORI, 2004).

3.Estrutura do modelo:

Base metodológica (condiciona a implementação): CityCell – urban growth simulator (SARAIVA et al., 2013)  Crescimento urbano simulado a partir do potencial de urbanização:

  1. Calcula a centralidade de cada célula a partir de carregamentos [urb + amb + inst] que geram tensões entre todas as células;
  2. Compara cada célula com seu entorno: a com maior “contraste” com a vizinhança (para menos), é a que tem maior potencial de crescer;
  3. Subtrai esse potencial das resistências [urb + amb + inst] da célula, em caso positivo, gera carregamento urbano na célula;
  4. Compara o carregamento existente com as resistências naturais da célula, se o primeiro prevalecer, altera o chamado “cell type”, ou fenótipo da celular, para urbano.

Serão apresentados, em na parte 2 dessa postagem, os experimentos de investigação das questões colocadas, a partir da implementação do modelo, elaboração de cenários experimentais e análise dos resultados.

REFERÊNCIAS

ABRAMO, P. A Cidade Com-Fusa: a mão inoxidável do mercado e a produção da estrutura urbana nas grandes metrópoles latino-americanas. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 9, n. 02, p. 25–53, 2007.

ALBERTI, M.; MARZLUFF, J. M; SHULENBERGER, E.; et al. Integrating Humans into Ecology: Opportunities and Challenges for Studying Urban Ecosystems. BioScience, v. 53, n. 12, p. 1169–1179, 2003. Uberlândia: American Institute of Biological Sciences. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1641/0006-3568(2003)053[1169:IHIEOA]2.0.CO>.

BARROS, J. X. Urban Growth in Latin American Cities Exploring urban dynamics through agent-based simulation, 2004. London: University College London. Disponível em: <http://www.dpi.inpe.br/cursos/environmental_modelling/joana_phd_thesis.pdf>. .

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BÓGUS, L. M. M.; TASCHNER, S. P. São Paulo: velhas desigualdades, novas configurações espaciais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 1, p. 153–174, 1999. Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.anpur.org.br/revista/rbeur/index.php/rbeur/article/view/29/17>. .

BUZAI, G. D. Geografia Global: El paradigma geotecnológico y el espacio interdisciplinario en la interpretación del mundo del siglo XXI. Buenos AIres: Lugar Editorial, 1999.

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